A fúria feminina de Daenerys Targaryen
Uma análise do triste fim da personagem mais icônica de Game of Thrones
O termo “female rage” tem se popularizado muito na última década, chegando até a ser usado como referência a um novo subgênero de histórias que abordam a temática da fúria feminina. Mas qual é a diferença dessa raiva inerentemente feminina e todas as outras?
Todas sabemos que, historicamente, as mulheres foram muito mais silenciadas que os homens, principalmente quando desviavam do que era considerado a conduta correta na época. Mulheres só podiam ser delicadas, elegantes, educadas, meigas e complacentes. Nunca fora do controle, nunca insatisfeitas, nunca raivosas. Foi dessa necessidade de expor o lado mais reprimido da feminilidade que surgiram essas representações de mulheres desequilibradas, impulsivas e muitas vezes terríveis. Protagonistas por quem você pode não torcer, mas cujas ações dão um alívio na alma por todas as vezes que não pudemos gritar.
Mas, é claro, em uma indústria tão masculina como a do entretenimento, essas representações muitas vezes caem em outra armadilha estereotipada: a da mulher maníaca. E até personagens inicialmente bem construídas correm esse risco. Foi o caso da Daenerys na última temporada de Game of Thrones.
George R. R. Martin sempre foi um escritor aclamado pela construção de seus personagens complexos e moralmente ambíguos. Quando perguntado em 2012 sobre como ele escreve mulheres tão autenticamente, Martin respondeu, rindo: “Sabe, eu sempre considerei mulheres como pessoas.”
As violências sofridas pelas mulheres em seu fenômeno de fantasia As Crônicas de Gelo e Fogo são alvo de muitos debates em relação a necessidade dessa característica medieval em um mundo tão irreal em que dragões existem, mas esse não é o foco de hoje.
A adaptação de seus livros deu origem a uma das séries mais populares e criticamente aclamadas das últimas décadas, Game of Thrones, que foi ao ar de 2011 a 2019. Mas a série tão adorada pelo público foi amplamente odiada por sua temporada final, principalmente pelo fim dado a protagonista feminina principal, Daenerys Targaryen.
O que aconteceu foi que os últimos volumes da saga de livros ainda não tinham sido publicados (e continuam assim) por George R. R. Martin, então o final da série de TV foi escrito completamente pelos produtores executivos David Benioff e D. B. Weiss. E, pelo jeito, eles não enxergam mulheres da mesma forma que Martin.
Durante as 7 temporadas iniciais, Daenerys foi de uma órfã sendo vendida pelo próprio irmão a uma jovem rainha adorada por seus seguidores, desafiando os estereótipos e conquistando exércitos ao libertar escravos e queimar seus donos escravocratas. Sua ambição é sustentada pelo seu direito de nascença ao trono, suas ações são direcionadas ao salvamento dessa sociedade pela qual ela se sente responsável. Ela é inteligente e calculista, ela fala os diversos idiomas de seus seguidores, ela mata apenas quando é moralmente correto, ela é a mãe dos últimos dragões, e ela conquista tudo isso para enfim poder se sentar no Trono de Ferro.
Então começa a última temporada. A forma como ela foi tratada nos episódios finais é um espelho dos valores patriarcais dos criadores da série: uma mulher poderosa é uma ameaça, então suas forças têm que ser voltadas contra ela.
Daenerys, que raramente agiu impulsivamente nos mais de 60 episódios anteriores, de repente sobe em seu dragão e queima impiedosamente todos os civis da capital do reino que ela está tentando conquistar. Como muitas personagens femininas antes dela, Daenerys não tem permissão para ser violenta, então sua fúria é categorizada como loucura. Durante o restante do episódio, ela é filmada como um dragão, e não como uma mulher. Seu rosto está escondido durante seu ataque à cidade e ela tem asas metafóricas em um dos frames mais famosos da série.
Daenerys, que até então era vista como uma salvadora e uma mãe benevolente, agora é um monstro.
Em seu artigo Daenerys Targaryen: Mad or Madly Ended? A Feminist Analysis of Her Downfall, Barbara Yauss escreve:
“In order to keep the patriarchal structure in place and men in power, powerful women are stripped of their power by being framed under stereotypes that make them seem irrational, selfish, mad, and ultimately, dangerous. The fear feeds into these stereotypes and, in turn, the stereotypes feed back into the fear.”
“Para manter a estrutura patriarcal e os homens no poder, mulheres poderosas têm seus poderes arrancados ao serem enquadradas em estereótipos que as tornam irracionais, egoístas, loucas, e enfim, perigosas. O medo alimenta esses estereótipos e, por sua vez, os estereótipos retroalimentam o medo.”
A fúria de Daenerys nos episódios finais de Game of Thrones é, infelizmente, um dos casos em que uma mulher é reduzida aos seus sentimentos histéricos, desprovida de pensamento racional e crítico. É importante, então, analisar a forma como essa raiva é demonstrada em personagens femininas, a fim de libertar as mulheres dessas amarras sociais ao invés de prendê-las com ainda mais firmeza.
Falando em personagens femininas cheias de raiva, isso me lembra de Elena Bordula, protagonista de Canção dos Ossos, a primeiro leitura do meu Clube do Livro que começou esse mês! Criado para lermos autoras nacionais de ficção especulativa, ao fim da leitura ainda teremos uma conversa exclusiva com a escritora! Tem mais informações e o link pra entrar no grupo no meu Instagram.
Até semana que vem,
Amanda
Wow