A ilha na borda do mundo era cercada por um monstro marinho, dizia a lenda. Ninguém nunca havia conseguido atravessar as águas escuras que rodeavam aquele pedaço de terra para descobrir se havia algo do outro lado.
— Está vendo aquela ilha ao longe? — o capitão havia perguntado a Ruel em seu primeiro dia, não muito tempo atrás.
O garoto estreitara os olhos até enxergar a pequena elevação em meio ao oceano azul. Ele não conseguiu realmente ver a ilha, mas o farol alto que a marcava era visível de uma grande distância.
— O que tem lá? — ele perguntara.
— É o fim.
— De quê?
— Tudo.
Essa havia sido a única explicação que o capitão o dera.
Chamá-lo de capitão era, na verdade, um adorno. Seu barco não era ilustre o suficiente para conferi-lo tal título e ele contava com uma equipe de apenas quatro homens. Mas era um gesto de respeito por parte dos outros rapazes.
Ruel não achava que homens respeitosos dariam relevância a lendas como esta, mas o tom tinha sido sério e Ruel não conhecia nenhum outro homem poderoso para comparar.
As palavras do capitão tinham sido finais, então fez a pergunta a seus companheiros pescadores algum tempo depois.
— A areia está permanentemente manchada de vermelho, com o sangue dos corpos — um deles dissera — Então preste atenção na água: assim que começar a ficar escura demais nós gritamos ao capitão.
Ruel olhou para todos eles enquanto os ouvia, procurando o reluzir de uma piada em seus olhos. Não achou nenhum.
Desde então, Ruel se manteve longe da ilha. Não era difícil. Não havia peixes perto dela, aparentemente tão amedrontados quanto os homens. Ruel poderia ter sido cético ao duvidar da tripulação e suas lendas de criaturas marinhas, mas ele era esperto em saber que os peixes conheciam o mar muito melhor do que ele jamais poderia. Então ficara afastado.
Era raro que saíssem para trabalhar durante a noite, acontecendo apenas quando a pesca do dia não havia sido o suficiente. Mas quando acontecia, um feixe de luz brilhava na água, mostrando o vermelho proibido. Ruel era grato por quem quer que estivesse dentro do farol, mesmo que não tivesse obtido uma resposta de nenhum de seus companheiros quando perguntara a respeito.
Era uma nebulosa manhã de domingo quando ele descobriu. Ruel não estava trabalhando naquele dia, então aproveitou o seu tempo para se sentar nas rochas que compunham a praia. Ou ele teria feito isso, se não tivesse as encontrado já ocupadas. Uma jovem mulher estava sentada com a cabeça nos joelhos e seus cabelos escuros balançavam ao vento atrás de si.
Seu primeiro instinto foi dar meia volta e ir embora. Só de olhar para ela, Ruel sabia que aquele era um tipo íntimo de tristeza, um que não aprecia espectadores. Mas, antes que pudesse ir, o rosto dela se levantou e seus olhos avermelhados o encontraram. Rapidamente, ela os secou com as mãos e endireitou sua coluna, então desviou o olhar, se levantou, e correu na direção contrária.
— Me desculpe — Ruel gritou — Você pode ficar. De verdade, eu vou para outro lugar. Não é problema algum.
A garota parou de correr e virou o rosto para trás. Estavam a apenas alguns metros um do outro.
— Eu já estava indo embora. Não vai me beneficiar em nada continuar chorando.
Ela sorriu tristemente. Ruel ousou dar meio passo em sua direção.
— Talvez queira falar sobre isso? Sobre o que poderia fazer uma bela garota tão triste.
Ao ouvir isso, ela terminou de se virar na direção dele. Com os olhos escuros e marejados, a garota o olhou de cima a baixo, hesitantemente.
— É muito gentil da sua parte, mas não quero te importunar com a minha lamentação.
— Eu prometo que não serei importunado — Ruel se sentou na maior pedra, aquela em que ela estivera momentos antes, deixando espaço para ela ao lado — Estou sozinho aqui também.
Ela considerou isso por um momento, com seus olhos amendoados o encarando por inteiro. Como se pudesse ver através dele.
— Está bem — ela se sentou, com o rosto a centímetros de Ruel e ele viu sua pele pálida perfeita como porcelana — É o meu pai. Ele trabalha no farol toda noite, mas ele ainda não voltou nesta manhã. Ele está atrasado há horas e não é do feitio dele fazer isso.
— O farol na ilha?
Era uma pergunta estúpida. É claro que era o farol na ilha, pois não havia nenhum outro por perto. Mas a ideia de que era uma pessoa real, sozinha dentro de uma torre naquele lugar, ainda mais um senhor de idade que deveria ser, era muito mais absurda.
— Sim. Eu o observo toda noite. Logo que o sol começa a nascer, a luz se apaga. Depois disso, são apenas algumas horas até ele chegar em casa. A luz se apagou no mesmo horário que faz toda noite, mas ele ainda não apareceu.
Ruel pensou sobre isso. Tentou imaginar isso acontecendo. Um senhor apagando a luz como faz toda noite, terminando seu trabalho para voltar a seu barco e à sua filha, mas nunca aparecendo.
— Acha que aconteceu alguma coisa no caminho de volta?
A garota virou a cabeça para ele. Ela tinha estado observando as ondas até então.
— No caminho de volta? Você quer dizer, no mar?
Ruel abriu a boca. Tinha acabado de plantar na cabeça da garota a imagem de seu pai sufocando em água até a morte. Afogando até as profundezas mais escuras do oceano, de onde seu corpo nunca voltaria. Possivelmente, tendo o barco virado por tentáculos enormes ou a pele dilacerada por presas inumanas.
— Ou não. Ele pode ainda estar no farol.
— Foi isso que pensei. Ele não é mais jovem e o farol tem quase cem degraus.
— Certo — Ruel disse e então percebeu que estava concordando com o fato de que o velho poderia estar estilhaçado e sangrando no fundo do farol. Ele só queria dizer algo que fosse reconfortante, e o que saiu de sua boca foi: — Podemos ir até lá checar.
Ele se arrependeu quase imediatamente.
— Mesmo? — os olhos dela brilharam com esperança — Você tem um barco?
— Não tenho — ele viu a luz se esvair dos olhos dela — Mas eu tenho acesso a um.
Então Ruel se viu roubando o barco do capitão para ir à ilha proibida com uma garota aos prantos. Uma garota cujo nome ele nem mesmo sabia.
— Desculpe — ele chamou de sua posição no timão. Ela estava mais a frente, perto da borda, observando o caminho. Quando ele falou, ela virou a cabeça e seus cabelos voaram — Você não me disse seu nome.
Ele teve que gritar para ser ouvido sobre o barulho do vento. Mas ela não parecia querer fazer o mesmo, então andou calmamente até ele.
— Amaya — ela disse bem ao lado dele, quase sussurrado como um segredo.
— É muito bonito.
Ela sorriu.
— Você também não me disse o seu nome.
— Ah — ele não havia notado — É Ruel.
— É muito bonito.
Normalmente ele ficaria chateado de ser chamado de bonito por uma garota. Ele se esforçara muito para que seus cachos louros e o rosto redondo fossem vistos como atraentes e galantes, ao invés disso. Mas desta vez, não se importou.
— Você costuma navegar por essas águas, Ruel?
— Eu sou apenas um dos pescadores — ele olhou para baixo para que não precisasse ver sua reação — Não sou o responsável por navegar. E eu nunca fui até a ilha intencionalmente, é estritamente fora dos limites. Ordens do capitão.
— Por quê?
Amaya tinha uma expressão confusa no rosto, com suas sobrancelhas desordenadas enrugadas.
— Você sabe como os marinheiros podem ser supersticiosos. Acreditam em todas as lendas.
— Eu não entendo.
— A lenda sobre a ilha. Você nunca ouviu falar?
Amaya olhou para baixo. Ela abriu a boca algumas vezes antes de dizer:
— Eu não conheço muitas pessoas. Eu não escuto uma estória desde que meu pai parou de me colocar na cama.
Havia uma tristeza em sua voz que Ruel reconheceu como solidão. Ele a sentia todos os dias, mas nunca havia percebido o quão rodeado de pessoas seus dias ainda conseguiam ser.
— Bem, a lenda diz que há um monstro marinho que nada ao redor da ilha. A criatura mata qualquer invasor e o sangue mancha a praia de vermelho. Ninguém consegue passar dali. É por isso que dizem ser a borda do mundo. Até esta manhã eu nem sabia que realmente havia alguém controlando o farol toda noite.
— Você acredita nessas estórias?
Ele queria dizer que não. Que suas mãos não suavam toda vez que a água ao redor do barco parecia avermelhada. Que ele não olhava desesperadamente para todos os lados à procura de uma sombra diferente na água. Que ele nunca tinha se deitado na cama com o corpo ainda boiando no mar de sua cabeça e sonhado com perder sua vida para a água. E, principalmente, que ele não estava pensando sobre todas essas coisas agora mesmo.
— A água realmente fica vermelha quando chegamos perto da ilha — Ruel disse, tentando que sua voz não soasse alarmada demais — Eu já vi. E os peixes não ousam nadar naquela direção.
Amaya ficou em silêncio por um tempo. Ela olhou de volta para o mar, seu cabelo como chicote voava perto do rosto de Ruel e trazia o cheiro de sal consigo.
— Se você acredita que há um monstro marinho ao redor da ilha, por que se ofereceu para me levar até lá?
Ruel não tinha uma boa resposta. Ele mesmo não sabia, as palavras tinham escapado da boca dele enquanto olhava para ela na praia. Naquele momento, ele não queria deixá-la ir embora com os olhos vermelhos e os ombros pesados. Naquele segundo à beira-mar, imaginou a garota voltando sozinha para uma casa silenciosa e sentando-se no chão sem saber o que fazer. Imaginou a si próprio voltando para a sua casa silenciosa e nunca sabendo o que havia acontecido com a menina da praia.
Uma das mechas do cabelo dela esbarrou contra o seu rosto no vento. Ruel a colocou de volta atrás da orelha dela e deixou a mão pairar em sua pele por alguns segundos.
— Acho que eu apenas sei como é estar só — Ruel cessou o toque — E eu não queria que passasse por isso sozinha.
Ele viu seus olhos seguirem sua mão quando se afastou de sua bochecha e voltou a repousar ao lado do corpo. Ele não sabia o que fazer com o braço enquanto ela o encarava, com a sensação de que cada parte de sua pele queimava conforme ela passava os olhos por seu corpo, até chegar de volta em seu rosto, onde mais ardeu.
— Você nem me conhece — ela sussurrou.
— Eu sinto que conheço. Acha que isso é loucura?
Eles estavam muito perto um do outro, apenas uma brisa fraca os separava.
— Sim, acho que é.
Mas ela sorriu e, pela primeira vez, o sorriso pareceu chegar em seus olhos. Cedo demais, ela voltou seus olhos para baixo, e então para o horizonte. Ruel fez o mesmo. Havia se esquecido de que estava conduzindo um barco.
Agora, a ilha parecia maior e o farol ainda mais. Era tão alto que Ruel nem conseguia ver o topo de sua posição sob cobertura do barco. O ar tinha outro cheiro por ali, também. O sal substituído por algo metálico. A condução do barco também se tornou mais difícil em algum momento, quase como se a água tivesse engrossado.
O barco desacelerou. O vento parou de soprar e o silêncio recaiu sobre eles.
O coração de Ruel batia rápido apesar de suas tentativas em mantê-lo sob controle. Em algum lugar dentro dele, uma voz sussurrava: a qualquer momento agora.
Amaya se afastou para olhar através da borda da embarcação. A silhueta dela se definiu contra o sol que brilhava forte.
— Acho que chegamos.
Ruel parou o barco por completo e também ficou parado, oscilando de um lado para o outro com ele, por algum tempo. Então saiu da parte coberta do barco e caminhou até o lado de Amaya no convés.
Ele não sabia bem o que esperava ver. Talvez um monstro enorme bem abaixo do barco, fazendo a água se tornar tão difícil de navegar. Ou uma pilha de corpos criando uma trilha das águas rasas até a areia.
Mas tudo que ele viu foi vermelho. A água era tingida de um vermelho escuro ao redor do barco e ficava mais vivo ao chegar perto da praia.
Seu coração batia tão alto em sua cabeça que ele mal ouviu Amaya recuperar o fôlego quando ela olhou para baixo pela primeira vez.
— O que é esse lugar? — ela sussurrou.
O fim do mundo, pensou Ruel. Mas não disse. O olhar amedrontado nos olhos dela já era o suficiente enquanto ela olhava da água cor de sangue até o topo do farol.
A enorme torre estava tingida em tons laranja escuro e branco, mas a tinta era tão antiga e seca que pareciam veias. O farol parecia um coração há muito finado, mas que se recusava a parar de sangrar e continuava manchando tudo ao seu redor. Olhe para mim enquanto eu sangro, o farol gritava.
Ruel balançou a cabeça e fechou os olhos com força. Dentro de sua cabeça, ele viu a tinta do farol se tornar sangue líquido e escorrer lentamente até o chão. Mas quando os abriu novamente, o farol estava intacto como antes.
Ele sentiu que, se olhasse demais na direção da construção, no entanto, veria coisas ainda piores. Era como se não conseguisse pensar direito ali, como se um som abafado borrasse sua mente.
— Vamos? — a voz de Amaya o fez voltar para o momento presente.
Ruel assentiu com a cabeça, mas ela não viu, pois já lhe dera as costas e descera do barco, diretamente para a água. Foi quando ele percebeu que ela não usava sapatos esse tempo todo. Ruel tirou as próprias botas e as amarrou juntas para pendurá-las no pescoço. Então se jogou na água, que encharcou suas calças até os joelhos.
O chão era feito de pedras, nada parecido com a areia macia da praia da linha costeira. Eram pequenas pedrinhas que espetavam a sola dos pés. Ruel tentou não demonstrar dor, no entanto, pois Amaya estava andando com determinação, quase na praia. Parte dele considerou se poderia estar sangrando pelos pés. Isso poderia ser o que tornava a água vermelha? Claro que não. Precisaria haver centenas de pessoas sangrando pelos pés por ali e eles dois eram os únicos naquela ilha deserta.
Quando Ruel chegou à praia, se recostou em uma enorme pedra para examinar as solas de seus pés. Ele temeu encontrar pequenas incisões, mas a pele estava intacta. Colocando as botas de volta, ele correu para alcançar Amaya, que já estava na porta do farol.
— Deixe-me ajudar — Ele correu até ela, porque a porta parecia pesada e as dobradiças, enferrujadas. Mas ela abriu facilmente com o toque delicado das mãos de Amaya, com o metal fazendo um barulho como o grito de uma baleia que tinha centenas de anos.
Ruel estava bem atrás dela quando ela deu o primeiro passo para dentro. O interior era uma espiral eterna de degraus. Janelas apareciam em intervalos para iluminar o caminho, mas ainda assim as paredes redondas eram escuras e cheias de rachaduras.
— Pai? — Amaya gritou com o pescoço inclinado para cima.
A voz dela ecoou em círculos até o topo. Nenhuma resposta veio de volta.
Ruel não achava que alguém realmente estivesse ali dentro, mas ela já estava pisando no primeiro degrau da escadaria de metal, que rangeu alto.
Amaya subiu, então Ruel a seguiu logo atrás.
Tudo ao redor dele cheirava a ferrugem e com cada passo que dava, via parafusos enormes balançando. Ele podia sentir a inconstância daquele lugar, que não estava apto a receber pessoas há muito tempo. Ele apenas esperava que conseguissem descer novamente.
Ruel não tinha um relógio, mas imaginava que haviam demorado quase uma hora para chegar ao topo. Quando o fizeram, ele estava sem fôlego e suas pernas queimavam de dor. Amaya não parecia tão incomodada quanto ele, já que logo correu para abrir um outro par de portas e se encontrou em um cômodo com mais uma escada em espiral. Eles subiram.
Finalmente, Amaya e Ruel chegaram à parte mais alta do farol, mas ela estava totalmente vazia a não ser pela enorme lanterna que ocupava a maior parte do espaço.
— Como ele pode não estar aqui? — A voz de Amaya estava baixa, mas aguda.
Instintivamente, Ruel colocou uma mão em suas costas, entre os ombros.
— Ele pode ter ido embora quando estávamos chegando. Nós deveríamos voltar.
Ruel não acreditava realmente nisso, mas o que ele mais queria fazer era dizer adeus a essa ilha solitária e estranha e fingir que nunca havia pisado ali. Talvez ele apenas pudesse pegar um parafuso enferrujado para mostrar ao resto da tripulação no dia seguinte. Isso poderia conferi-lo um pouco mais de respeito, que estava em falta por ser o mais novo de todos eles.
Mas Amaya ignorou suas palavras e sua mão gentil. Ela empurrou a porta de vidro que cercava o local e atravessou até o passadiço do lado de fora. Era tão estreito que ela nem mesmo precisava esticar o braço para alcançar o parapeito.
Ruel foi atrás dela, sentindo o vento soprar em seu rosto com o cheiro de sal e ferrugem. A vista era de tirar o fôlego. Ele podia ver a água vermelha viva espirrando na praia de pedras abaixo e então se tornando cada vez mais escura enquanto ia mais longe da costa. Em algum lugar, a água se tornava vermelha escura e então quase preta, para depois virar azul marinho. O barco do capitão estava balançando de um lado para o outro suavemente no vermelho escuro e era a única coisa interrompendo a água. Não havia nenhum monstro para ser visto de cima, nenhuma enorme boca cheia de presas esperando alguém para cair dentro e nenhum tentáculo grande o suficiente para cercar a ilha inteira.
Mas havia algo diferente ali fora. Enquanto estava do lado de dentro, no silencioso labirinto circular, Ruel estivera pensando com clareza novamente. Mas agora que estava do lado de fora, havia de novo a sensação de que algo, algum tipo de som, abafava seus pensamentos.
Amaya estava andando por toda a circunferência do farol. Uma. Duas. Três. Na quarta vez, Ruel colocou uma mão em seu cotovelo e ela parou subitamente.
— Eu tinha certeza de que ele estaria aqui — A voz dela era quase um sussurro, como se ela não ousasse admitir aquilo em voz alta — O barco dele não está na ilha.
Ruel não precisou dar a volta no passadiço para ter a certeza de que o pai de Amaya havia deixado a ilha. Então por que ele não voltara para a filha?
— Sinto muito — ele disse e ouviu sua própria voz como se estivesse através de uma parede de água — Você ouviu isso?
Ele se virou, as mãos agarrando o parapeito. A parte superior de seu corpo se curava por cima dele perigosamente.
— É como música — e quando ele disse, ele pareceu ouvir claramente pela primeira vez.
Era uma melodia assombrosa. Harmoniosa, como se um coro de centenas estivesse cantando. Ruel olhou em volta e de novo. Havia apenas um lugar de onde poderia estar vindo.
O oceano estava cantando para ele.
O oceano o convidava. E Ruel disse sim. Ele não disse muito, na verdade, ele apenas caiu. E mal sentiu quando seu corpo atravessou por cima do parapeito e ele despencou pelo ar.
Ruel não sentiu o vento o atravessando, tão gelado que podia cortar seu rosto. E ele não sentiu o frio na barriga enquanto caía. Não sentiu, pois tudo isso durou apenas um segundo.
Ele atingiu a água. Estava mais fria do que ele se lembrava estar quando tinha percorrido o espaço entre o barco e a praia.
Despencou para baixo, o corpo todo submerso. Estava numa parte profunda o suficiente para que não quebrasse os ossos ao cair, mas não tão profunda que ele não conseguisse nadar de volta para cima. Quando ele chegou à superfície, apertou os olhos e olhou para baixo. Suas mãos estavam vermelhas na água sangrenta. Mas o sangue não era dele, tinha clareza o suficiente para saber disso.
Ele não ouviu um segundo respingo na água, mas sentiu o movimento de alguma coisa perto dele. Algo submerso raspou pelos seus pés.
Ruel sobressaltou dentro da água e viu Amaya nadando ao seu lado. Instintivamente, ele olhou para cima. Seus olhos arderam e ele mexeu a cabeça até o sol se esconder atrás do farol. O passadiço estava mesmo vazio.
E Amaya estava ao lado dele, com os cabelos encharcados para trás e gotas de água descendo pela sua testa e deixando para trás trilhas avermelhadas.
— A-Amaya? — ele lutou para tirar a palavra de sua boca, já que seus dentes estavam batendo de frio.
Sua intenção era falar outra coisa. Perguntar como ela tinha caído na água sem ele ouvir ou se ela estava se sentindo bem, mas Ruel não conseguia pensar direito. A música tinha se silenciado, mas uma névoa ainda manchava sua mente.
— O que está acontecendo? — indagou, ao invés disso. De alguma forma, ele sentia que ela saberia a resposta.
— Você deveria fazer perguntas mais específicas se quiser respostas para elas.
Algo havia mudado nela. Ele não podia ver o que, exatamente, mas sua voz soava diferente, não mais o sussurro amedrontado que ela tinha proferido o dia inteiro. E ela se movia na água de uma forma que nenhum corpo humano poderia. Amaya não estava nadando, ela deslizava. Não precisava mover os braços para fluir sem esforço pela água.
E ela não piscava enquanto olhava para ele.
Ruel abriu a boca algumas vezes, mas sua mente não conseguia formar uma frase merecedora de ser dita a ela.
— Você mudou — foi tudo que saiu de sua boca.
Amaya continuava o encarando fixamente, com os olhos abertos há muitos minutos seguidos.
— Sim.
Algo o agarrou pelas pernas. Ruel se debateu na água, mas a coisa era forte demais. A sensação era de uma serpente marinha gigante, se enrolando ao redor dele e o segurando firmemente. Ele olhou para baixo. Através da água avermelhada ele viu uma cauda curvada duas vezes ao redor dele e a outra ponta estava ligada a Amaya. Não ligada, exatamente. Fazia parte dela.
Dentro de seu coração, ele entendeu, mesmo que na sua cabeça não fizesse sentido.
— Você é o monstro.
Ruel achou que estivesse falando apenas para si mesmo, mas as palavras escaparam para fora em um sussurro. Ele imediatamente procurou o rosto dela com os olhos, com medo de encontrar raiva neles. Ao invés disso, ela tinha o sorriso mais verdadeiro que ele havia visto em seu rosto o dia inteiro. Sua boca estava aberta o suficiente para que ele agora conseguisse ver as presas pontiagudas que ela tinha no lugar dos dentes.
— Parabéns — ela disse — Você encontrou uma lenda.
Dessa vez, Ruel sentiu o frio em sua barriga e em todo o seu corpo. Apesar de Amaya ter dito isso através de um sorriso, ele podia ouvir em seu tom e ver em seu semblante maléfico que isso não era nenhum tipo de vitória. Era uma maldição.
— Eu não entendo.
Não era apenas sobre Amaya ser metade-peixe a que Ruel se referia. Ele não entendia como alguém tão doce como a garota com quem ele passara o dia podia estar o encarando tão friamente agora. A transformação que ele ouvia na voz dela e sentia em seu olhar eram muito mais perturbadoras do que a física.
O sorriso desapareceu de seu rosto quando ela ouviu.
— Você está me cobrando uma explicação? — Amaya olhou para o céu e Ruel imaginou que ela parecia apenas uma garota boiando na água se alguém a visse de cima, sem ter nenhuma ideia de que logo abaixo disso ela usava sua cauda monstruosa para sufocá-lo. Era uma ilusão perturbadora, porque ele ainda se via acreditando nela mesmo agora. Então ela olhou de volta para ele, em um movimento preguiçoso, mas com o olhar atento. — Que tal uma história de terror?
Estou vivendo uma, pensou Ruel. Ele não disse em voz alta, mas Amaya escutou mesmo assim.
— Você acha que isto é uma história de terror? Por favor, você esteve aqui por algumas horas. O verdadeiro horror é uma dor cotidiana. É quando seu lar é como a sua profundeza do oceano pessoal: escura e cheia de predadores — ela deslizou até ele e se colocou em sua frente em alguns segundos. Então ela sussurrou em seu ouvido — Você não conhece o fundo do oceano, não é? Não se preocupe, vai conhecer.
— P-por favor, Amaya — Ruel conseguiu balbuciar, mas ela nem mesmo deixou seu nome sair da boca dele por completo.
— Você quer que eu escute você? Vocês nunca nos escutaram.
Um arrepio passou pelo corpo de Ruel. Nos. A maior parte de seu corpo estava submerso em uma água escura, através da qual ele não podia ver o fundo. Haviam outras por ali? Ele estava em oceano aberto, poderiam haver centenas delas e ele não saberia.
— Não. Nem mesmo quando éramos humanas — Amaya virou para ver a reação dele — Sim, Ruel, eu fui totalmente humana uma vez. Mas não tente argumentar com essa parte de mim. Ela se foi há muito tempo.
Ruel queria perguntar como ela tinha se tornado essa criatura, com a cauda enorme e reluzente feita de escamas ásperas, mas suspeitava que deveria apenas ouvir. Mais uma vez, Amaya parecia saber o que ele pensava. Ela sorriu para ele antes de responder à pergunta silenciosa.
— As mulheres que pedem socorro ao oceano não são amaldiçoadas — ela disse, como se apenas isso fosse o suficiente para explicar tudo — Somos salvas. A água acaba com todas as partes fracas de nós, porque o oceano é impiedoso e não há espaço para delicadeza nele. Mas não foi o oceano que fez monstros de nós. Vocês fizeram isso. Homens que gostam de nomear coisas porque os faz sentir no controle. Vocês entraram em suas máquinas de conquistar o mar e se surpreenderam ao acharem coisas dentro dele que eram desconhecidas para vocês. Então se voltaram para suas mentiras e mitos.
Amaya usou sua cauda para apertá-lo ainda mais. Ruel percebeu que estava chorando quando uma lágrima escorreu e o alcançou na boca, com gosto de sal. Então Amaya riu e o soltou. Ele começou a afundar imediatamente. A água entrou em sua boca e ele sentiu gosto de sal e sangue. Seus braços e pernas não pareciam responder ao que seu cérebro mandava. Mas enfim, com braçadas trêmulas e arfando por ar, Ruel voltou à superfície.
Ela não o tinha deixado ir, estava apenas nadando em círculos ao redor dele para ter certeza de que ele não escaparia. Amaya estava olhando para o céu, mas se voltou para ele enquanto ele tossia.
— O porquê de vocês serem tão obcecados com monstros, eu nunca vou saber — ela falou, ignorando o quanto ele se debatia para boiar — Mas eu tenho uma teoria: vocês criam monstros porque acham que assim vão manter as mulheres sob controle, da mesma forma que fazem com crianças. Não saia sozinha se não o homem mau vai as capturar. Não tente fugir de barco, porque o monstro marinho não vai te deixar passar. Funcionou por um tempo?
Ruel achou que a pergunta era retórica, mas o tempo passou enquanto ela o encarava.
— E-eu não sei.
— Nunca funcionou, Ruel. E sabe por quê? Porque mulheres têm mais a temer do que criaturas de contos de fadas no oceano. Elas dormem com monstros todas as noites. É tudo sobre perspectiva, afinal. Um monstro para um pode ser salvador para outros. As mulheres não têm medo de nós. Elas recorrem a nós, porque os seus nomes inventados não significam nada. O oceano não lê suas palavras e não segue as suas regras. Vocês nos transformaram em monstros, mas só para vocês. Transformam em monstros quem vocês tinham anteriormente transformado em presas. Inventam mentiras e vão dormir à noite, sem saber que ao lado dorme outro monstro. Um futuro monstro. Que vocês mesmos inventaram.
A história tinha acabado. Eles estavam no fim da narrativa.
— Eu nem mesmo tenho uma esposa — Ruel sussurrou por entre dentes que tremiam.
— Ah, mas vai ter. Ou, bem, não mais. Mas teria, se não fosse por mim.
— Por favor, Amaya — a ponta da cauda dela roçou por um de seus pés, o fazendo pular — Eu nunca machucaria você.
O rosto de Amaya girou com raiva. Ruel soube imediatamente que tinha falado a coisa errada.
— É claro que não — Amaya se aproximou dele, seu rosto perfeito e frio o olhando de cima enquanto ele chorava e implorava — Porque você não pode.
Essa foi a última coisa que ele ouviu e o céu foi a última coisa que ele viu.
Depois disso, Amaya manteve sua promessa e Ruel realmente conheceu as profundezas do oceano. Ela arrastou o corpo dele por toda a imensidão misteriosa da água até o fundo. E atravessou por todas as criaturas que, como ela, eram feitas de escuridão.
Amaya deixou o corpo de Ruel junto com todos os outros. E ela soube naquele momento por que o sol não ousava penetrar naquela parte do oceano. Por que razão escolheria iluminar o cemitério de seus filhos?
Quando caiu a noite, Amaya subiu até o farol e ligou a lanterna. Ela iluminou o oceano vermelho, brilhante na escuridão. Então deixou a ilha e nadou até a costa, na mesma praia em que tinha encontrado o último garoto.
A ilha na borda do mundo era cercada por um monstro marinho, dizia a lenda. E era verdade, mas era um monstro como nenhum outro. Com mechas de cabelo escuro no vento e duas pernas. Um monstro que andava pela praia como um convite pessoal para pecar. E ela estava andando descalça na areia de novo pela manhã.
Até que um marinheiro a encontrou e cometeu o erro fatal de se aproximar.