Eu só me vejo pelos olhos dele. Essa é a minha maldição.
Para todos os efeitos, sou cega por conta própria. Apesar de meus olhos funcionarem perfeitamente bem — capazes de enxergar uma lasca no mármore que rompe o efeito de pele macia, escolher cada pigmento por seus subtons e temperaturas, ler uma página inteira e todas as suas entrelinhas de uma só vez —, é impossível enxergar meu próprio rosto. Onde ele deveria estar existe apenas uma máscara de pedra perfeitamente moldada. Quebrada e reformada para tomar a forma que ele desejasse. Lixada até que as linhas ficassem suaves e as protuberâncias desaparecessem.
Eu não sou feita de pedra, não. Mas bem poderia ser, de tão moldada que já fui.
Quando os olhos dele se voltam para mim, é quando eu me torno real. O queixo se levanta como se tivesse vida própria, as costas se esticando para tornar a figura mais esguia. De repente, me vejo. Fico absolutamente consciente de minha imagem.
— Venha aqui — ele pede. Não, comanda.
Eu me levanto e minhas pernas parecem mais pesadas que o normal, os passos mais trôpegos do que eu gostaria. Será que estão mesmo? Será que existe uma camada a mais entre o ar e os meus ossos? Eu quero abaixar minha cabeça para conferir, mas não faço ideia de como fica meu rosto visto de tal ângulo, então resisto à tentação.
O caminho até ele dura apenas alguns segundos, mas parecem muito mais longos para mim. Cada milissegundo ocupado com uma nova e inoportuna preocupação.
— O que acha?
Ele se vira para analisar a pintura no cavalete e eu finalmente me torno sem rosto. Sinto o alívio percorrer meus músculos.
A garota na tela também não está olhando para mim. Seu rosto está levemente abaixado na diagonal, a linha do queixo definida em tons de bege. Ela se senta perfeitamente parada em um divã que não é interessante o suficiente para ele, apenas uma forma quadrada sem detalhamento. O centro das atenções é ela. Sempre ela.
— Minha musa — ele diz e eu sinto o ribombar de sua voz quando passa os dedos pelo meu queixo.
Me torno tão inerte quanto ela, congelada como uma estátua. Ela não está olhando para mim, mas agora eu posso ver seu rosto. Meu rosto. É assim mesmo que eu sou? Ou é assim que ele me vê? Há diferença?
Sou eu a que respira agora ou a que congela para sempre no tecido?
Eu desaparecerei um dia e ela não, imortalizada para sempre pelas mãos dele, pelos olhos dele. Quando a virem nos museus em uma centena de anos, pensarão nele, não em mim.
Porque eu sou a musa e ele o artista.
— Perfeita — ele diz.
Meus olhos não encontram os dele, apesar de sentir o peso de seu olhar. Estou fascinada por ela, pelas linhas que a manifestam na tela.
Perfeita.
Perfeita.
Mas quem deu a ele o direito de fazer minha perfeição sua? Ela não era minha primeiro?
Ou a perfeição sempre foi dele? Sem o peso de seu olhar, eu seria perfeita?
Isso importaria?
— Pode se sentar de novo.
Mas minhas pernas não se movem. Mesmo quando ele se afasta e pega o pincel em seus dedos robustos, eu fico parada ali, encarando meu próprio reflexo em tinta. Antes que eu possa impedir, minha mão está levantada, esticada em direção a tela. Quero sentir a maciez da minha pele, mas sinto apenas a tinta molhada, deslizando pelos dedos e pelo tecido.
— O que você fez?! — A mão dele segura meu braço com força, apertando furiosamente.
Na tela, uma mancha no formato dos meus dedos atravessa o que antes era o meu rosto. Estou deformada agora. Riscos grotescos perturbam as linhas, a mandíbula se estende para baixo como um monstro, um dos olhos derrete como se chorasse a si próprio, o pescoço está quebrado em um ângulo horrível.
— Você arruinou tudo.
Junto com as palavras duras vem sua mão pesada. Sinto o ardor na bochecha, o espasmo faz minha mandíbula pulsar, um olho lacrimeja, a força de seu punho faz meu pescoço se virar numa direção errada.
Eu me reconheço na tela manchada muito mais do que antes. Quebrada, horrível, arruinada.
Ele se vira, encarando a obra com desgosto.
A feiura me preenche como alívio. A liberdade do meu rosto terrível faz minha coluna se curvar. Os ombros murcham, a cabeça pende para baixo, a barriga relaxa.
Na tela, o sorriso contido ainda está perfeito. Um risco suave de lábios cheios.
No chão, em meio ao horror da verdade, um sorriso descontrolado se forma na boca.
Liberta da perfeição, agora estou livre dele também.